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O que Santa Maria pode aprender com o maior surto de toxoplasmose do mundo

Entre dezembro de 2001 e janeiro de 2002, 426 pessoas ficaram doentes em Santa Isabel do Ivaí, no Paraná

Na última sexta-feira, um novo boletim sobre o surto de toxoplasmose que assola Santa Maria elevou de 271 para 352 os casos confirmados da doença. Como ainda há 198 pacientes em investigação e novas notificações continuam a ser feitas, a tendência é de que seja ultrapassado em breve aquele que até o momento é considerado o maior surto da história em todo o mundo.
Ocorrido entre dezembro de 2001 e janeiro de 2002 no município paranaense de Santa Isabel do Ivaí, o atual recordista teve 426 doentes confirmados. Uma análise do que ocorreu então pode ser útil para avaliar a situação que os santa-marienses estão enfrentando.
O episódio foi estudado a fundo por um grupo de pesquisadores da Universidade Estadual de Londrina (UEL), que publicou suas conclusões na revista científica Ciência & Saúde Coletiva. Os quatro autores (Márcio José de Almeida, Luzia Helena Herrmann de Oliveira, Roberta Lemos Freire e Italmar Teodorico Navarro) afirmaram que “faltou liderança local competente nos dias mais importantes da crise, aumentando o desencontro de informações e dificultando o trabalho em equipe”.
Conforme o trabalho, cerca de 600 pessoas procuraram os serviços médicos, em Santa Isabel do Ivaí, entre os meses de novembro e janeiro (em Santa Maria, as notificações já passam de mil). Os casos em gestantes foram sete, com um aborto espontâneo e seis crianças que nasceram infectadas (uma delas com anomalia congênita grave, resultando em morte). Na cidade gaúcha, já são 27 gestantes infectadas, com 2 óbitos feitais e um aborto confirmado. As grávidas são o principal grupo de risco para a toxoplasmose.
Outra grande preocupação diz respeito a problemas oftalmológicos. Nos primeiros exames oftalmológicos, feitos em 176 pessoas, 14 (8%) apresentaram alterações sugestivas de toxoplasmose ocular em Santa Isabel do Ivaí. Em junho de 2002, quando novos exames foram realizados, 15% das pessoas apresentavam lesões oculares, incluindo seis recém-nascidos.
– Isso merece muita atenção. Todas as pessoas têm de ser examinadas e fazer exame de fundo de olho – ressalta o oftalmologista Cláudio Silveira, especialista em toxoplasmose, que viajou a Santa Isabel do Ivaí durante o surto para ajudar na investigação da causa.
Como em Santa Maria, a identificação da doença não foi imediata. Na cidade gaúcha, os primeiros casos foram em janeiro deste ano, mas sé em abril as autoridades de saúde reconheceram que havia um surto de toxoplasmose. No Paraná, segundo o estudo dos profissionais da Universidade de Londrina, o diagnóstico “foi dado no início de dezembro, quando a esposa de um dos médicos do município, ex-secretário municipal de saúde e dono do hospital privado da cidade, foi infectada e os exames laboratoriais confirmaram a doença”.
A partir da mobilização que se gerou, uma especialista da secretária estadual de saúde preveniu: o problema poderia vir da água – como em quase todos os grandes surtos já documentados. O abastecimento, feito por uma empresa do município, era realizado por meio de poços artesianos, e um dos reservatório ficava próximo a um matadouro. Jornalistas da Folha de Londrina publicaram uma reportagem, da qual constava a foto de uma gata, com a legenda “um gato é encontrado perto da casa onde ficam bombas d água que abastecem a cidade: protozoário tem no felino o hospedeiro natural”.
Apesar disso, conforme os pesquisadores da UEL, as autoridades do município “insistiam em negar que o problema proviesse da água, lançando suspeitas sobre os alimentos, como a carne suína, o leite e as verduras”. Em Santa Maria, a questão da água também tem sido polêmica. Especialistas insistem que ela é a principal suspeita, mas até o momento apenas uma leva de amostras, coletadas no mesmo dia, foi enviada para análise. Os resultados negativos foram divulgados com pompa pela Corsan e pelo prefeito municipal, Jorge Pozzobom – apesar de terem escasso significado, segundo os profissionais da área.
Em entrevista a Zero Hora, um dos principais especialistas brasileiros em toxoplasmose, o professor da Universidade de São Paulo (USP) Esper Kallas, ressaltou que são necessários exames repetidos:
– Num surto de maior dimensão, a principal suspeita é a fonte hídrica. Mas não é fácil de achar, porque às vezes a água em que você faz o teste não tem o toxoplasma naquele momento. Você tem de fazer várias vezes, ir repetindo, porque mesmo que dê negativo, você não exclui essa possibilidade.
Em Santa Isabel do Ivaí, sanitaristas do governo do Estado chegaram em janeiro de 2002 e começaram a investigar a fonte da contaminação. Segundo o estudo da UEL, o comportamento de algumas autoridade deu motivo a desentendimentos. “Nem a secretária de Saúde, nem o prefeito de Santa Isabel da época concederam entrevista à equipe da pesquisa, mas entre os que foram entrevistados foi unânime a percepção de que o prefeito omitiu-se de suas responsabilidades”.
– O prefeito não assumiu a posição dele como prefeito. Ele continuou fugindo até o final do mandato. Ele largou, ele só fugia, dizia que aquilo não tinha nada a ver com a água – relatou um médico da cidade paranaense.
Em Santa Maria, também surgiram críticas a atuação das autoridades. Na semana passada, um grupo de infectologistas do município divulgou uma nota técnica com críticas graves. No documento, acusavam o prefeito de passar a ideia de que a fonte da contaminação não era a água e questionavam as autoridades por minimizar a gravidade do surto e por não avançarem com a investigação das causas. Na relação com a imprensa, as autoridades municipais e estaduais têm mantido o secretismo. Apesar dos insistentes pedidos de ZH, não informaram à população quais são os bairros atingidos e não forneceram dados sobre o avanço da doença, impedindo a sociedade de saber se o surto está em ascensão ou declínio.
Contaminação da água, inicialmente refutada por autoridades, foi a causa do surto no Paraná
Durante o surto de 2002, um novo titular foi nomeado para a Secretaria da Saúde do Paraná. No discurso de posse, anunciou que o combate ao surto de toxoplasmose seria sua prioridade de governo, envolvendo duas questões principais: garantir um sistema eficaz de informação à população e traçar um diagnóstico preciso da doença. Em paralelo, um advogado ameaçou entrar com uma ação civil pública para reparação de danos às vítimas e responsabilização criminal dos responsáveis. Também questionou o silêncio do Ministério Público. Em Santa Maria, o MP estadual e o MP federal se envolveram. Na semana passada, convocaram uma evento e, ao lado do prefeito e do representante da Secretaria Estadual da Saúde, manifestaram apoio às autoridades.
– Estamos todos aqui para mostrar que estamos atuando juntos, que somos um time no combate a uma doença que pode ter consequências graves. Santa Maria pode virar exemplo de combate a um surto severo. Queremos ser notícia positiva – disse Bruna Pfaffenzeller, procuradora da República em Santa Maria.
A investigação no Paraná mostrou que a origem era a contaminação do reservatório de água que abastecia o município, por causa da conservação precária. A descoberta ocorreu graças a engenhosidade de uma das médicas enviadas para ajudar na investigação, como recorda o oftalmologista Cláudio Silveira.
– Foi uma gata que contaminou a fonte de água da cidade, com suas fezes. O surto começou em dezembro, então uma das pesquisadoras teve uma ideia brilhante. A água contaminada já tinha ido embora, mas ela se deu conta de que as escolas estavam em férias e disse: “Vamos ver a caixa d’água das escolas, onde a água não foi consumida, porque elas estão fechadas”. Ela foi lá e descobriu a origem do surto. É um trabalho de detetive – afirma Silveira.
No caso de Santa Isabel do Ivaí, a crise se resolveu em pouco mais de um mês – e mesmo assim deixou um trauma. Em Santa Maria, dura desde o começo do ano, com os primeiros casos acontecendo em janeiro, explodindo em março e sendo reconhecidos como um surto de toxoplasmose em abril. É um caso raro de surto prolongado, o que leva especialistas como Silveira a considerá-lo “inédito e misterioso” e a suspeitarem que estejam ocorrendo repetidas contaminações do recurso hídrico. O tempo passa, mas a origem continua do surto continua desconhecida. Para Esper Kallas, descobrir a fonte de contaminação deveria ser a prioridade máxima.
– É preciso identificar a fonte o mais rápido possível. Essa é a prioridade. Quando há muitos casos em período muito prolongado, o que isso significa é que a fonte não foi ainda contida. Tem de falar assim: “De onde está vindo? Quais as possibilidade?”. Se você pegar 100 pessoas e descobrir onde elas beberam, vai achar muito mais facilmente a fonte comum. Se todos os casos aconteceram na zona oeste da cidade, você começa a desconfiar que tem alguma coisa lá. É mais fácil identificar a fonte pelo mapeamento dos casos. Quanto mais rápido fizer isso, melhor. É mais fácil debelar a fonte do que esperar que a população siga os cuidados de prevenção.
Em Santa Maria, as autoridades não informam as regiões mais atingidas. E recém começaram, depois de um mês de terem reconhecido do surto, a fazer as entrevistas detalhadas que podem ajudar a encontrar a origem do problema. Para Esper Kallas, em um caso assim, é fundamental analisar surtos anteriores, para ver o que pode funcionar.
– Para investigar surto, tem de ir atrás do que está publicado, procurar saber o que aconteceu, aprender com  experiências anteriores e depois tentar aplicar. Querer sair do zero não é sábio – alerta.
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